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O PEDREGULHO (De frente com o Mal)
Ainda que não vá me permitir resvalar ao encontro da discussão travada pelas mentes mais brilhantes da escolástica que, por quase um milênio – desde Santo Agostinho até São Thomás de Aquino –, pontificaram acerca da existência de satã, que “não seria o ser, mas a privação do ser” até a pacificação doutrinária do tema no Concílio de Latrão (1215), definindo o “bruto” como “criaturas criadas boas que houveram por bem optar pelo mal”, todas as vezes que relembro este “causo” não posso deixar de considerar o que disse o poeta francês do século XIX, Charles Baudelaire sobre ele, o satanás, o troll, o lidith, o gog e magog, o asuras, o harit, o kankas, o mefistoles: “O maior truque do ‘coisa ruim’ foi convencer-nos de que não existe”.
Este é o relato de um caso acontecido comigo, na década de 1970, que há muito estava rascunhando, perdido com meus alfarrábios e carecendo que lhe desse forma final.
Ficção ou não é uma história e tanto, baseada em fatos reais, por isso meus amigos, tenham clemência, vou contar...
O caso se deu em julho de 1973 ou foi de 1974? Não importa. A coisa assombrou tanto que, até os dias de agora, parece ter acontecido no inverno passado.
Era inverno “mermo” – como fala o carioca – muito rigoroso, que produzia uma sensação térmica de sempre alguns graus abaixo de zero, quando a ponta do nariz e outras extremidades congelam, os lábios ressecam e as bochechas ficam vermelhas, todas queimadas. Não havia roupa feita para nossa terra, onde até naquela época não se tinha ouvido falar de neve, geada, geleira, frio de matar ou coisa parecida. É certo que lá pras bandas do Sul, na Região das Missões, esfriava para valer, mas no Rio de Janeiro não.
“O clima do Brasil vai mudar. Estão maltratando demais o planeta...” Há mais de 40 anos já ouvia este vaticínio dos consagrados cientistas que compunham o corpo de funcionários da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais – CPRM (o Serviço Geológico do Brasil), instituição na qual cheguei menino e de lá saí avô.
Estava eu posto em sossego, encolhido na minha salinha de advogado na velha “Companhia” – como comumente à CPRM nos referíamos – a qual, sem janela embora, não me livrava do frio que fazia lá fora. O telefone interno tocou e, instintivamente, olhei o relógio, falando para meus botões:
– A esta hora! Quem será? Já passam das 9h 40min da noite...
– Dr. Barcellos, é Lúcia. O senhor ainda tá aí? O comandante Jobá pede para o senhor descer. Pode ser?
– Já que não posso falar que não estou, “tô descendo” – respondi, brincando.
Então, me ocorreu, imediatamente, vem bomba aí na certa. Mas ainda bem. Há dias que o ambiente estava, atipicamente, sem solavancos, sem sobressaltos. Desci as escadas do quarto para o terceiro andar, onde ficavam instaladas a Presidência e as Diretorias da Companhia e me dirigi para a de Administração, situada à esquerda, no fundo do corredor para o qual a escada dava acesso. Aproximando-me percebi que ali o expediente parecia estar apenas começando. Estavam trabalhando a todo vapor, as secretárias – Lúcia e Leila –, dois funcionários cheios de pastas e papéis na mão, esperando para serem atendidos e o Pedro do café, com sua inconfundível bandeja tomada de bule, xícaras e açucareiro. Num canto mais ao fundo, do lado esquerdo, encostado na parede, quase dormindo, estava sentado o motorista Waldomiro. Esperando... esperando...
– Hi! Hi! Vai entrando que o “homem” está agitadíssimo...
– Quem “tá lá” com ele? – indaguei cauteloso.
– Ora, quem? Seu braço direito, o Comte. Clynton, e seu esquerdo também –, completou Leila, a outra secretária. – O Presidente Ronaldo acabou de sair daqui e está furioso!
– Tá “berrando mais do que bode embarcado”, disse o Pedro do café, sorrindo para mim.
– Para o Presidente sair da sala dele e vir até aqui é porque a “coisa está preta”... Sei não... – falou Lúcia com ar assustado.
– Ai... ai... O que, por essas bandas, nestes tempos não é sério, grave ou perigoso? Mas vamos lá... – acrescentei resignado.
Era uma sala retangular, bem cumprida, dotada de um pé direito de quase cinco metros de altura – que nos dava uma sensação de ela ser bem maior ou que a gente seria ainda menor do que era – toda forrada com bom tapete de lã creme e composta com móveis e poltronas de jacarandá e couro, ao estilo dos anos 1970, de boa procedência e fino gosto, como de resto era todo o mobiliário de escritório daquela Companhia. Findava numa parede de madeira e vidro até o teto, com bandeiras móveis no centro, da qual se podia ver, de dia, a enseada da Urca e o Iate Clube com seus barcos ancorados, e se deliciar...
Todos os ambientes ali eram majestosos e não podiam ser diferentes, visto que integravam um verdadeiro monumento arquitetônico, – o imponente prédio de estilo neoclássico tardio, com elementos de características greco-romanas, concebido em 1880 e concluído em 1908, para ser a sede do “Pavilhão dos Estados”, da Exposição Nacional Comemorativa dos 100 anos da Abertura dos Portos do Brasil às Nações Amigas. Teve sua construção determinada pelo Ministro do Império, Barão Homem de Mello, por ordem de sua Majestade Imperial D. Pedro II e executada pelo engenheiro Antonio de Paula Freitas, ocupando uma área de 7.600 m2, na atual Av. Pasteur, 404, no Rio de Janeiro, na época “Praia da Saudade”. Hoje é conhecido como o “Palácio das Geociências”.
Num primeiro plano, à direita de quem entra na sala, havia uma mesa de madeira com quatro poltronas sem braços, destinada aos encontros de trabalho e às pequenas reuniões. No ambiente intermediário estava posto um conjunto de quatro poltronas de estar, que cercava uma mesa de centro e tudo colocado na frente de um armário baixo, tipo arca, utilizado como arquivo pessoal de documentos do diretor. Adiante, na frente de duas poltronas para visitantes, se encontrava a mesa de trabalho, com três metros de comprimento e sua poltrona de couro amarelo queimado. Bem perto e na frente de uma estante alta de Gonçalo-Alves, ponteada com metal escuro, cor de bronze, na qual se viam os conhecidos “manuais de organização” daquela respeitada empresa governamental.
Sentados de frente um para o outro, ali estavam o diretor, Comandante João Baptista Torrents Gomes Pereira e o Chefe de Serviço, Comandante Clynton Cavalcanti de Queiroz Barros. Sem dúvida, que devo a estes homens e ao Presidente Ronaldo Moreira da Rocha - que os escolheu para fundar a Companhia - muito de minha formação pessoal e profissional. Sem dúvida que influenciaram, de forma significativa, meus vinte anos, em face de sua retidão de caráter, de sua conduta profissional, reconhecido patriotismo e, sobretudo, em razão de sua história de vida, da qual conheci lances admiráveis.
A opção de Ronaldo por esses dois refletia sua já consagrada reputação na área de Minas e Energia, na época, como administrador, sério, competente, probo, com qualidades especialíssimas, que o habilitavam para ser “o fundador” daquele importante órgão das geociências e muitas vezes denominado como um “plantador do jequitibá”.
O Comandante Jobá, como era conhecido no dia a dia da Companhia, era – e ainda é – um incansável e incorrigível provocador. Sempre disposto a polemizar. Sempre pronto para enfrentar fortes discussões, com grandes alaridos e acerca de tudo podia pontificar em razão de sua brilhante inteligência e invulgar espírito de luta. Não é à toa que, ainda na Marinha, se graduou em bacharel em Direito e hoje, com mais de 80 anos, ainda advoga.
O Comandante Clynton, quanto àquelas qualidades e atributos em nada – em nada mesmo – devia ao Jobá, porém tinha um estilo mais discreto, reservado, também alegre e brincalhão, do tipo que você quer ter por perto na hora do perigo concreto e por amigo uma vida inteira, por conta de sua firmeza e lealdade.
Quando entrei os dois chefes cravaram o olhar em mim, ao mesmo tempo, deixando transparecer, propositalmente, a aura de gravidade que envolvia o assunto a ser tratado. Contudo, para não assustar demais, o diretor didaticamente “quebrou o gelo” dizendo:
– E aí garoto, trabalhando até esta hora ou está deixando passar o tempo para justificar em casa a “ida pra gandaia”?
– O senhor sabe que eu mesmo não sou disso, né...?
– Este é igual ao meu irmão Cemarú. Um santarão, disse Jobá.
– É... É... É esperto desde que nasceu, mas a mim não engana não... – disse o Clynton, com um sorriso nos lábios.
– Escute aqui menino, você tem medo de disco voador?
– Tenho, claro que tenho, respondi ao diretor.
– Eh! Mas não tem mesmo – e piscando o olho acrescentou o Comandante Clynton: Embora todo homem tema o desconhecido.
– Tenho medo sim, mas sou doido pra andar num.
– Agora explica, disse o Jobá.
– É simples, Comandante. Se uma criatura qualquer vinda de um mundo distante, que a gente nem sabe onde fica, chega aqui pilotando aquela parafernália jamais imaginada por nós é porque evoluiu muito e isso só ocorre por licença do Criador. Logo há que se admitir que sua evolução foi boa, quase perfeita e em todos os sentidos. Por conta desta possível perfeição não faz sentido que eles viessem aqui nos contatar com propósitos menores, por conta de sentimentos subalternos ou simplesmente para fazer o mal, antes de se certificar para que ou para quem, não é mesmo? Só o que se pode aprender com eles, numa viagem daquelas, vale toda uma existência...
– O espertinho... Chega de “filosofice” e vamos trabalhar – disse o Comandante Jobá.
– Foi o senhor quem começou... – acrescentei.
Sentado ao meu lado, de frente para o diretor, o Clynton esboçava um sorriso maroto e, reservadamente, gozava a situação, sempre tranquilo, seguro e calmo, como cabe a um bom fuzileiro, até que o Jobá falou:
– Estamos com um problema grave e, certamente, na Companhia você é a pessoa que já enfrentou situações semelhantes. Na “paróquia” em que o fato está ocorrendo – onde dizem que acontece de tudo e onde, inclusive, o povo do lugar vê disco voador a toda hora – o momento não está nada bom. A solução do caso exige uma pessoa com seu conhecimento técnico e com sua coragem. Além do mais, como bem observou o Clynton, você tem a nossa formação e é muito esperto mesmo...
– Bem, agora quem tem que explicar é “Vossa Eminência”. Eu sou apenas um noviço, candidato a “padre de cúria”. Os dois riram e o Jobá foi falando:
– O Presidente Ronaldo me disse, que o CENIMAR (Serviço de Inteligência da Marinha) lhe transmitiu a informação – que chegou a mim também – no sentido de que um bando de comunistas, bem armados, ligados às “Ligas Camponesas”, está insuflando os superficiários (proprietários de terra) e os coordenando para que formem, clandestinamente, uma associação visando parar, antes de começar, nosso programa de sondagem na região, o que vai nos dar causa, se isto acontecer, a um prejuízo de milhões por mês e impedir o desenvolvimento do grande Projeto de Pesquisa de Fosfato”, que vai levar o Brasil a autossuficiência em fertilizantes. O nosso Superintendente em Belo Horizonte, o Prof. Benedito Paulo Alves, grande figura das Geociências, já falou - ao defender, no passado, esse Projeto - que um insucesso aí pode representar uma derrota sem precedentes.
Então o Comandante Clynton explicou, pausadamente:
– Tem que se deslocar para lá um funcionário que conheça e fale, com autoridade de advogado acerca dos direitos dos proprietários – que nunca serão desrespeitados – e que não se preste diante da primeira dificuldade, por qualquer medo ou insegurança, para passar para o outro lado. Se algo interferir naquela sondagem, daí decorrerá, além do prejuízo ao qual o Jobá se referiu, outros maiores, porque o Brasil carece desse fertilizante, no grande salto que quer dar na produção agrícola, para poder fazer frente ao “déficit” na balança de pagamento. Entendeu?
– Você, continuou o Jobá, terá que agir sozinho. De forma objetiva, certeira, rápida e, em dois ou três movimentos, conquistar a confiança dos maiores proprietários da região – que são cinco, além de outros 20 menores por eles liderados – convencendo-os de que os inimigos deles são na verdade as “Ligas Campesinas”. Deve convencê-los de que nós só queremos trazer para a Região – e para o Brasil – grande desenvolvimento. Entretanto, não se engane, tem que ser tudo muito rápido porque os outros dois que lhe precederam, mandados pela área de segurança, foram passear num domingo e apareceram boiando afogados na Cachoeira do Córrego das Laranjeiras, famosa na Região. A missão é do conhecimento do Ministro, do Presidente Ronaldo, do meu, naturalmente e do Clynton, que irá preparar sua viagem, ministrar seu treinamento e lhe fornecer a segurança pessoal. O que o senhor me diz?
Considerando que o diretor começou a me chamar de “senhor”, percebi que a coisa era séria mesmo, mas mesmo assim não pude perder a oportunidade de contra-atacar, devolvendo o susto e, com o mesmo ar grave de preocupação, falei:
– Comandante. Sou advogado da CPRM, não sou caçador de comuna. Não sou polícia, nem fui contratado para me expor de forma alguma. Tenho família, mulher “braba” e três filhos. O senhor levou tudo isso em consideração ou acha que isso não é importante?
O diretor, então, com um ar decepcionado, triste, mas tranquilo, já ia “mandar bala”, quando interrompi sua oração:
– O senhor iniciou falando de medo. Medo de tudo isso eu tenho, pode ter certeza, só os idiotas e os parvos nada temem. Contudo, temo muito mais que, um dia, possa ser considerado um mau brasileiro, ou deixar transparecer impatriotismo e, sobretudo, ser um covarde. Se esta missão fosse confiada a outro, nesta Companhia – e se viesse a ser do meu conhecimento – nunca me perdoaria por não ter conseguido, após todos esses anos de trabalho, demonstrar aos senhores o meu amor ao Brasil e a lealdade à nossa causa. Como se dizia no Esquadrão de Cavalaria do Colégio Militar (de onde fui direto para a Faculdade de Direito), vou sim “com o peito em festa e o coração a gargalhar”. Pode hoje parecer meio boboca, mas o sentimento é o que importa e tanto naquela época como agora é o mesmo, quando se tem amor pelo seu País. Falando assim, ensimesmado pensei: “É claro que vou. Tenho minhas armas... posso viajar...”
Como diria o homem do campo: “Foi assim que se assucedeu, deche jeitu”. Eu, de minha parte, estava pronto para “pegar o capeta de frente”, para “pegar o boi pelo chifre” e feliz da vida por ter a confiança daqueles dois, em relação aos quais admirava a história e os antecedentes. Eles têm um belo exemplo de vida. É mesmo... Sendo assim, peço, neste ponto, que o leitor espere um “tantinho”. Desculpe-me se roubo um pouquinho do seu tempo, mas o caso exige esclarecer algo sobre aqueles dois.
Vou contar aqui o que sei deles e que bem os define como brasileiros de boa cepa, apenas repetindo o incrível relato do pai de um colega meu de Turma, no Colégio Militar – Júlio Bierrenbach (o Almirante de Esquadra e Ministro do Superior Tribunal Militar, Júlio de Sá Bierrenbach) em sua importante monografia: “1954-1964 – Uma Década Política”, publicada pela Domínio Público Editora, em 1966.
Tais fatos haviam acontecido nove ou dez anos antes daquela época. Eram os dias conturbados que antecederam o Movimento de 1964 - a Revolução Civil-Militar de 31 de março de 1964. Digo, assim, justamente para confrontar os “esquerdinhas de plantão”, os quais hoje, neste País, parecem ser muita gente, desde que estavam de fraldas.
Não é tarefa fácil conhecer a verdade histórica. Para identificá-la realmente é necessário ver passar algumas gerações. Por exemplo: a julgar pelo que se diz, na atualidade, sobre a Alemanha de 1930 e 1940, o ouvinte mais desavisado pode concluir que Hitler fez e produziu todo o mal que se sabe simplesmente sozinho, ou com o apoio de uma meia-dúzia de cidadãos. Não foi isso. Basta se ter vista para os documentários da época, que se verão marchas do partido da suástica e reuniões imensas, formações incomensuráveis, com um visual simplesmente grandioso e o delírio de todo um povo. Entretanto, não se sabe, nos tempos de agora, de alemão algum que tenha sido nazista (nacional-socialista) ou de francês que não tenha sido “maquis” (heróis da resistência francesa).
Também hoje, no Brasil, por consabidas razões, só se fazem referências ao Movimento de 1964 como o tempo da “ditadura militar”, da “tortura sangrenta”, dos “anos de chumbo” e dos “trogloditas de todas as patentes”, como se a classe civil não tivesse dela participado - só os “milicos”. Participou, sim, e foi buscar nos quartéis os militares que de resto, desde 1912, eram chamados de quando em vez, se o País se encontrasse “a beira da falência do poder civil”.
A coisa inverteu. Recordo-me que há pouco mais de três décadas, toda a sociedade civil, principalmente os chamados formadores de opinião – a grande e esmagadora maioria – tinha nominado como “troglodita” o tipo “analfabeto de carteirinha”, os “malnascidos” – que não têm nada a ver com a origem humilde, são os malformados mesmo – ou os despreparados, ávidos para subir na vida a golpe de estelionato eleitoral. Hoje se diz que são todos aqueles que não querem se deixar confundir com os “esquerdinhas de champanhota”.
Deixando, entretanto, a celeuma de lado, voltemos ao nosso “causo” e nele à lembrança da bonita história de Clynton e Jobá.
Naqueles idos de 1964, conforme Bierrenbach (1996, pág. 146), o Presidente João Goulart e o Governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola e seus correligionários pregavam, a seu modo, a democracia e a subversão à ordem constituída, insuflando a subversão nas nossas instituições, a começar pelas Forças Armadas.
Já havia acontecido o famoso “Comício da Central do Brasil”, onde aquelas lideranças de esquerda incitaram a desordem como meio para derrubar a ordem instituída, objetivando outra a ser por eles colocada no lugar, valendo-se do sovado artifício de incitar a revolta das classes menos favorecidas - o proletariado. No Rio de Janeiro, o Governador Carlos Lacerda – infinitamente mais culto, melhor cabeça e orador muito mais poderoso e capaz do que o “triplo de todos os adversários juntos” – colocou-os contra a parede e fez um veemente apelo às forças instituídas: “Apelo às Forças Armadas para que respeitem a Lei e não aos caudilhos...”
Também, cerca de 800 senhoras da sociedade do Rio de Janeiro enviaram um memorial ao Ministro de Guerra, Gen. Jair Dantas Ribeiro – fraterno amigo de meu pai, Barcellos Netto – alertando contra “o peso das sombras ameaçadoras, sopradas por fortes e rubros ventos moscovitas”. No dia 19 de março, São Paulo viu acontecer aquilo que acabou denominado como “a maior concentração popular de toda sua história”, até aquela época. às 16 horas, deu-se início, na Praça da República, à “Marcha da Família com Deus Pela Liberdade”, reunindo mais de 500 mil pessoas de todas as condições sociais, registre-se: significativo número de participantes, em razão da população da época.
Outras manifestações civis eclodiram no Estado de São Paulo (Araraquara, Assis, Santos, Itapetininga, Atibaia, Ipauçu, Tatuí) e no Brasil inteiro (Paraná, Minas, Piauí, Goiânia, Brasília) até que aconteceu a marcante “Revolta dos Praças da Marinha e Fuzileiros Navais”, insuflada pelos políticos de Jango e seu cunhado Brizola.
Aquilo foi a “gota d’água” em relação ao que se podia suportar para não depor o Presidente eleito (eleito aliás como Vice-Presidente de Jânio Quadros) um líder civil com quem Jango não tinha a menor afinidade. Jango subiu ao poder, não por aqueles que o queriam na Presidência, mas por um golpe do destino, ocorrido em razão de um fato jamais imaginado que pudesse acontecer, por quem quer que fosse: uma surpreendente e desconcertante renúncia de um homem eleito como “salvador da pátria”, ou como remédio para uma sociedade que tinha apodrecido.
Relativamente ao procedimento dos governistas, pontificou o Deputado Bilac Pinto (citado pelo Min. Bierrenbach) acerca do levante dos marinheiros: “Os vermelhos buscam solapar a ordem militar, estimulando por todos os meios os choques entre subalternos e superiores, a fim de enfraquecer o potencial ofensivo e defensivo das Forças Armadas, pois que elas são os mais importantes protetores das instituições democráticas que pretendem destruir.” Isto era a expressão da verdade e, naquele tempo, ninguém em sã consciência podia contestar.
Os praças e os fuzileiros contaram também com o apoio incondicional do temido Contra-Almirante Cândido Aragão, Comandante-Geral do Corpo de Fuzileiros Navais e, incitados pelos políticos de Jango, acabaram por abandonar seus navios (é crível?) e foram se homiziar, amotinadamente, no dia 26 de março, na sede do Sindicato dos Metalúrgicos, situado na Rua Ana Nery, em São Cristóvão, no Rio de Janeiro.
Contou o Ministro Bierrenbach (1996, pág. 153), falando daquele momento, que a “Marinha estava em regime de prontidão rigorosa e, desde as primeiras horas da manhã do dia 27 de março, o comandante-geral do Corpo de Fuzileiros Navais, o Contra-Almirante Aragão, com toda a crise em ebulição, estava ausente, abandonou o quartel-general, o Q.G. O Ministro de Marinha, então, exonerou o Aragão, determinou sua prisão e nomeou para substituí-lo o Contra-Almirante F. N. Luiz Felipe Sinay”.
A resposta dos amotinados veio trazendo o apoio dos Ministros do Trabalho e da Justiça de Jango e exigia: a) demissão do Ministro de Marinha; b) a recondução do Contra-Almirante Aragão; c) o reconhecimento da associação deles marinheiros e d) anistia para todos os praças e fuzileiros amotinados.
Por conta disso, o Ministro de Marinha, Almirante Sylvio Mota, se demitiu e, à noite, o Presidente Jango prestigiou os amotinados, fazendo o seguinte: 1) aceitou a exoneração do Almirante Sylvio Mota; 2) nomeou Ministro de Marinha o Almirante da Reserva Paulo Mário da Cunha Rodrigues; 3) não puniu os revoltosos e 4) reconheceu sua agremiação espúria. O clima tornou-se insustentável e a deposição do Presidente que havia “virado cabo eleitoral dos revoltosos” era iminente. O que conto agora, também está, na sua essência, no livro do Ministro do STM, Júlio de Sá Bierrenbach.
A ordem de prisão do Almirante Aragão estava em vigor. Prendê-lo era o problema - um risco enorme. Eu não o conheci, mas dele se diziam coisas do “arco da velha”. Era almirante da Marinha antiga, não fez Escola Naval, nem curso do Estado Maior. Paraibano de “sete costados”, veio de “praça de pré”. Conhecido como o “almirante vermelho” ou “almirante das esquerdas” era, entretanto, querido pelos marinheiros, valente até “a excomungada da beira”, truculento e gordo. Muito temido, sua fama “corria longe”. Tendo chegado a Capitão de Mar e Guerra, foi levado a Contra-Almirante pela “Lei da Graduação”. Seu padrinho político era o então Ministro Chefe da Casa Civil de Jango, Darcy Ribeiro, que, segundo dizem, o livrou, na Marinha, de um processo por peculato, arquivado por falta de provas.
Como ia dizendo, a ordem de prisão do Almirante estava vigorando, contou o Ministro do STM:
“O memorando secreto assinado pelo Chefe do Estado-Maior da Armada, na véspera – dia 26, determinava a prisão rigorosa por dez dias “por ter infringido o 2º do art. 7º do Regulamento Disciplinar da Marinha, abandonando seu cargo em ocasião em que a MB está de rigorosa prontidão”. A tarefa caberia ao Almirante Fernando Carlos de Matos que não a pôde cumprir, porque Aragão se encontrava foragido no Tribunal Marítimo, acobertado pelo Almirante Paulo Mário, até então presidente daquele Tribunal.
Como os ventos lhe pareceram favoráveis, Aragão saiu da toca para assistir à passagem do cargo de Ministro. Em automóvel, quando pretendia transpor a entrada para o pátio do 1º Distrito Naval, acompanhado do Coronel-Aviador Moreira Lima, foi interceptado por alguns oficiais. Estes portavam metralhadoras que foram recolhidas, na véspera, ao serem abandonadas em frente ao Sindicato dos Metalúrgicos.
O Capitão de Fragata FN Clynton Cavalcanti de Queiroz Barros, dirigindo-se a Aragão, disse: “Almirante, o senhor sabe que está preso.” Aragão aos berros respondeu: “Isso é um absurdo, um almirante ser preso por um capitão de fragata!” Clynton prosseguiu: “O senhor está preso por ordem do Ministro da Marinha.” A um gesto de Aragão, Clynton levantou a arma; Aragão, então, disse: “Abaixa isto, menino, isto só atira em mãos de homem.” Clynton respondeu:
“Então você vai ver seu porco”, engatilhando a metralhadora ao mesmo tempo em que o Capitão de Fragata João Baptista Torrents Gomes Pereira entrou, encostando sua metralhadora no peito de Aragão e dizendo: “O senhor está preso.” Moreira Lima, que estava do outro lado do carro, saiu e contornava o veículo, por trás, em direção a Clynton, quando foi neutralizado pelo Capitão de Corveta Omar Amilcar Temer, um homem enorme, cujo apelido, na Marinha, era “poste de amarrar onça”, que deu uma “gravata” no Moreira Lima e o prendeu.
Atrás desse carro, conforme Bierrenbach (1996, pág. 157), também vinha, em outro, para assistir à transmissão do cargo de Ministro, o Almirante José Paulo de Albuquerque Guilhobel. Os oficiais mencionados solicitaram ao Almirante Guilhobel que conduzisse o preso ao Gabinete do Ministro, e assim foi feito. Ao chegar lá o Ministro mandou que levassem o Aragão ao Comandante do 1º Distrito Naval. Lá chegando, o Comandante do 1º DN – amigo do Aragão – chamou o preso para “tomar uma sopinha com ele”, uma vez que já era hora do jantar... Aquele “compadresco” iria terminar em menos de quatro dias. A Revolução aconteceu em 31 de março de 1964.
Quase 30 anos depois Clynton me contou, um dia aí no passado, que naquele momento histórico, em face das circunstâncias em que o incidente ocorreu ia mesmo atirar no Aragão. Isto se o Contra-Almirante não se rendesse. Igualmente me contou Jobá que, nesta hipótese, muita gente morreria, inclusive eles, porque a “guarda armada” do Almirante estava por perto e ali muita gente se encontrava armada também. Aqueles homens tinham enfrentado o “tinhoso” de frente.
Tendo dado ao leitor uma ideia de quem foram aqueles dois brasileiros, saio diretamente do ano de 1964 para aqueles dias gelados de 1973 – ou 1974 – na sala do Jobá, na CPRM, e retomo o “causo”.
Aceitei a missão deixando os dois despachando e sendo assim passei pelas secretárias, que àquela altura já estavam “mortas de cansaço” e fui para casa. Havia combinado com o Clynton que, no dia seguinte, me afastaria da Consultoria Jurídica, sob o pretexto de que havia sido designado para um “treinamento de campo”, na área de segurança, fora do Rio – coisa que, na época, fazia sentido e ninguém questionava. Dei início ao meu trabalho de reconhecimento do problema, e do lugar a ser alcançado; dos meus contatos e, obviamente, ao meu treinamento. Tudo fora dos muros da Companhia.
Depois de três dias eu estava pronto para partir. Para me acompanhar, inclusive nesta fase inicial, foi destacado um velho marinheiro, homem experiente e ambientado com missões em terra, na selva e no mar, o Sargento Fuzileiro Naval Antuércio Antalpa Catacumba do Vidigal – o “Sargento Fuzileiro Antalpa”. Devo confessar que de outra feita, quando fizemos o desmonte e a apreensão das “minas de scheelita” de São João do Sabuji, na região do Seridó, do lado de Caicó, no Rio Grande do Norte, Antaupa estava comigo e iria me salvar a vida. Essa, entretanto, é outra história na qual irei invocar, inclusive, o testemunho do grande Superintendente da Companhia em Recife, na jurisdição do Nordeste. Mas esse é outro conto...
Partimos em busca da pequena Tapiraí, situada a Noroeste da Lagoa da Prata, depois da Serra Marcela do Urubu, no Alto São Francisco, há uns 1.200 metros de altitude, em Minas Gerais, cerca de 800 km do Rio, seguindo pelo “Circuito das Águas”, no Sul de Minas. Dormimos em Boa Esperança, e depois de quase dois dias de viagem de carro, a bordo de uma Toyota novinha, puxando uma carretinha de quatro rodas a ela atrelada, chegamos ao local da missão em meio a um inverno de travar.
– O frio está de matá, seu dotô. Pió do que o frio “home” é este vento que corta a “carni” do marujo, seu dotô, repetia de quando em vez Antalpa, meu companheiro de aventura. Que Deus o tenha em bom lugar...
É bem verdade que ele não se cobria tanto, mas eu – menino de cidade grande – a par de nunca permanecer tanto tempo em “campo aberto”, não possuía a mesma resistência daquele homem do mato, sergipano dos bons, velho praça de caserna e fuzileiro naval de muitas lutas, bem acostumado não só ao vento que assovia nas várzeas e nos cumes dos morros, como também, ao que risca forte em mar aberto.
Tinha que andar vestido com botas grossas, com meias de lã, com ceroula de flanela branca por baixo da calça do terno, sempre de lã, com duas camisetas debaixo da camisa social, com luvas de couro, cachecol e um “Prada”, também de lã, na cabeça. Ao frio só se fazia concessão àquele “estado de repolho”, com o casaco desabotoado na frente. Havia de ser assim. É desta maneira que o “pessoal” da área de segurança recomendava, nas aulas de treinamento, para as missões oficiais no campo, a fim de se ter mais flexibilidade e total facilidade para sacar as duas Imbell de 9 mm, com 17 balas no pente e uma na agulha (oxidada uma e a outra cromada), que portávamos nos coldres de peito e de cinto.
A cidade era muito pequena e, a não ser por sua conhecida cachoeira do “Córrego das Laranjeiras”, situada a uns 15 km do centro, não se diferenciava de muitas outras que passamos pelo caminho. Vista assim do alto, na chegada, parecia um aglomerado de pequeninas casas coloniais, cercada de verde por todos os lados. Tinha uma praça calçada, a igreja matriz de “São Sebastião” naquela praça, a Prefeitura e a Câmara instaladas em duas daquelas casinhas brancas. O comércio local se resumia ao velho armazém de secos e molhados, uma quitanda, meia dúzia de lojinhas, inclusive de material de construção e vários botecos. Tudo estava sempre muito vazio, com um ou outro “gato pingado”. Cheio mesmo e até com jeep e uma caminhonete Chevrolet 1950 parados na porta, só um casarão colonial tipo sede de fazenda antiga, onde se reuniam os coronéis, donos das terras ao redor da cidade, que teve origem numa estação ferroviária.
Depois de conseguir um lugar para pousar, na pensão da dona da única padaria existente, que alugava quartos só “pra viajeiros da capitá” – gente miúda não, como fez questão de ressaltar a proprietária. No dia seguinte me reuni com o pessoal que mandava na região.
O Prefeito não estava lá e, para bem dizer, não era esperado. Tratava-se de um “pau mandado” do coronel mais antigo, era funcionário do Posto dos Correios local, mas terras não possuía e, por isso nada tinha que falar, segundo pensavam: Com o dotô chegado de Brasília pru modu de arresorver, de vez, esta ameaça de fazê nossas fazenda virá um buraco fundo só.
A sala estava cheia de gente, todos sentados em volta de uma mesa de jantar comprida, com 24 cadeiras. Depois fiquei sabendo, a casa não era sede de fazenda, era a “casa da cidade” do Coronel Francisco Lemos, grande latifundiário da região, já falecido, e que ao Município foi doada “de porteira fechada”. A sala era assoalhada com tábuas corridas de Braúna encerada, com altura de 4,30 metros. Da porta de entrada via-se ao fundo, outras duas, aberta uma para o ambiente dos fundos e outra para o que seria a área de serviço da tal residência. Suas paredes laterais possuíam, cada uma, seis janelas do chão ao teto, com bandeiras de vidro de subir e descer e os vãos entre cada duas delas eram compostos, nos dois lados, por dois pares de cristaleiras e de louceiros, tudo de jacarandá encimado com mármore rosa de carrara. As critaleiras guarneciam vários conjuntos brasonados de jantar e café, finas peças de porcelanas monogramadas e cristais de todo tipo - uma beleza! Dizem que esta louça serviu ao Presidente Hermes da Fonseca, quando pernoitou na casa, ao vir para Região, em 1911, inaugurar a “Estação Ferroviária de Perdição”.
Na cabeceira da tal mesa sentava-se o coronel mais idoso, parecendo ser o mais poderoso – e realmente era - que se levantou junto com todos os outros e foi falando alto:
– Bom senhô seu dotô “Barcelar” escute o seguinte: Se o senhô vem aqui, com sua conversa mole de adevogado de capitá pru modu de dizê que vai esburacá nossas fazendas e deixá purisso mesmo é bom a gente num começá a prosa... O senhô dá meia vorta e vá simbora em paz. Seu dotô vou lhe passá um avisu pru senhô falar no orvidu do General Presidente, e, neste ponto suspendeu com os dedos a aba do chapéu dizendo, a quem Deus guarde e o mundo inteiro e terminou: – Se nóis quizé o seu pessoá num cavuca um parmo desse nosso chão. Vão ter de chamar a “Guarda Nacioná e suspendendo, de novo, a aba do chapéu: Tamus entendido?”.
Pela experiência que possuía com aqueles homens do interior, não fiquei surpreso e rapidamente contra-ataquei:
– Mas Coronel! Meus amigos! Não carece nada disso! Antes de mais nada, apresento a todos os meus respeitos. Estou vindo aqui em nome do General Presidente (e aí também levantei a aba do chapéu, e todos repetiram o gesto), para pedir licença antes de entrar nas vossas terras e, se nelas nós pudermos trabalhar, tudo – mas tudo mesmo – que for atingido ou danificado, antes de acontecer será por nós pago, no preço que os senhores puserem, porque a gente não pode botar preço nas coisas dos outros, não é mesmo?
Um fazendeiro, sentado ao lado do idoso, cochichou: “Menos male, cumpadre, menos male...”
Percebendo a mudança de rumo, arrisquei minha cartada decisiva e com os olhos confirmei a presença de Antalpa, encostado em uma da portas ao fundo, situada estrategicamente, atrás do Coronel mais idoso.
– Mesmo assim, meus Senhores, se os ilustres fazendeiros e sitiantes não quizerem, nos vamos embora e, neste caso, temos a opção de desenvolver nossa pesquisa na cidade vizinha de Campos Altos, onde o Coronel Tonico Taveira já disse que nos dará todo apoio e de graça. Lá naquelas paragens nós não temos tanto fosfato, mas serve. O ruim desta história é que Tapiraí não vai ver um tostão dos milhões de dólares que vão rolar com a produção de fertilizantes, nos próximos 30 anos...
Com os olhos arregalados um fazendeiro, sentado no outro lado do meu interlocutor, cochichou também:
– Eu não lhe disse cumpadre que os Taveira tavam de olho nesta riqueza pru café deles. Os cabras são safados...
– Pois bom seu dotô, vamos prosear, disse o coronel.
Assim como os políticos locais, também haviam sumido do pedaço, naqueles dias, os tais homens da “Liga Camponesa” que, há tempos, tinham “sentado praça” na cidade, para fazer a cabeça dos coronéis. Ninguém sabia dizer o que tinha acontecido. Eu sim. Clynton me disse, antes de sair, que “o pessoal da segurança” mandou um aviso para a “esquerda” do lugar, no sentido de que logo após a minha vinda para a cidade, lá chegaria uma patrulha de fuzileiros com a missão de prender os arruaceiros que estavam tentando incendiar aquela região e que eu mesmo já trazia uma carreta cheia de equipamentos modernos de comunicação com Brasília. A rigor, a carreta transportava um “fluviometro”, destinado a ser colocado nas margens do Rio Paranaíba, o qual eu deixaria, até ser instalado em definitivo, na casa do futuro “Observador Hidrológico” escolhido para integrar um exército de observadores do Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica – DNAEE, composto de mais de 6 mil ribeirinhos que, no Brasil, eram responsáveis por anotar as medições que alimentavam os registros e depois o futuro banco de dados da Companhia, no qual se baseavam os estudos relativos ao controle dos regimes dos rios do país.
Foram três dias de intensas negociações, em conjunto e com cada um dos fazendeiros ou sitiantes de per si e, graças à cordial hospitalidade mineira e à formação pessoal dos donos das terras, não foi nem um pouco difícil esclarecer que nossos projetos de mineração e sondagem não acabariam com suas fazendas e que o fertilizante encontrado, além de ter uma parcela do seu preço de comercialização paga ao dono da mesma ou superficiário, ainda multiplicaria por dez a produção agrícola de cada um deles. Também martelei – ressaltando o fato relativo ao progresso que batia às portas daquela pequena Tapiraí – que, longe de ser ruinoso, nosso Projeto os tornariam mais ricos ainda.
Antalpa assistia a tudo. Com suas armas nos coldres, era uma figuraça que assustava muito nossos amigos. Tudo quanto me parecia adequado ou necessário eu pedia para ele confirmar. Antalpa colocava a mão em cima do coldre e invariavelmente respondia:
– E claro que é seu dotô, então eu não tava lá quando os homis falaram com o senhô. Todos olharam para ele ao mesmo tempo, depois para mim igualmente e ficaram balançando a cabeça... Era algo inusitado e fantástico, que meus vinte anos jamais haviam presenciado.
Pois bem. Tudo combinado, assinamos com os coronéis um protocolo de intenções. O difícil foi ensinar a eles o que era e para que servia aquele “importante papeli da capitá com embrema e tudo”. Seus direitos seriam totalmente garantidos pelo Governo, mas a CPRM poderia “furar buracos” à vontade. Consegui mais. Combinando, por fora, obtive deles a “promessa de honra”, “pru modu de que eles mesmu iam de botá o pessoá das Liga para sumir de lá”. O Coronel mais idoso disse e “agarantiu” que colocariam no encalço deles o delegado Chico Pedrosa, que tinha fama de manter sua cadeia sempre vazia, “pruquê, sem arma nem coração, ele num prendia, só batia ou despachava”. Missão cumprida. Começamos nossa viagem de volta e aí, como se falava naquelas bandas, foi que “a porca torceu o rabo”.
Quando voltei à pousada para pegar minhas tralhas, lá eu encontrei me esperando, nada mais, nada menos, que o “Seu Vigário”. Padre Benedito era um “homem santo” na boca do povo, com “trocentos” anos de paróquia, tido como pessoa de grande respeito e admirado pela gente da cidade e do sertão da serra. Seu Vigário era “padre de batina”, devia contar mais de oitenta, pequeno, magro, cabecinha branca e olhos azuis. Uma criaturinha muito doce, falava baixinho, calmo e pausado, mas quando sentou ao meu lado, na sala da pensão, a batina abriu um pouco e deixou mostrar, sem querer, a panturrilha da perna direita onde nela estava presa uma surrada cartucheira de couro claro, com um Tauros 38 de cabo de madrepérola. Um espanto... “Seu Vigário” estava ali me esperando apenas para dar um aviso. Havia sabido que eu era um homem católico e por isso lhe “cumpria cuidar da minha alma e de minha vida”. Disse, quase sussurrando, que nós não devíamos voltar pelo caminho por onde viemos e, sim, por um atalho para a cidade vizinha de São Jerônimo das Poções, e de lá para Campos Altos e Araxá, onde pegaríamos o asfalto, porque o pessoal da “Liga” poderia estar de tocaia. Falou, também, que o único inconveniente é que teríamos que subir e atravessar o morro do Urubu, uma serra alta, íngreme, estreita e de quase 10 km de subida, mas “pagava a pena” e, concluindo, acrescentou:
– Meu filho, o seguro morreu de velho e o desconfiado ainda até hoje é vivo... Fora isso, continuou dizendo, chame seu “cabra armado” e vamos lá para frente do jeep que vou rezar vocês com água pesada e poderosa.
Foi aí que escutei uma das coisas mais impressionantes que ouvi na vida. Na hora não percebi nada. Talvez tenha notado só um ar sério e preocupado demais no rosto daquele velho padre, nada além. Até hoje quando penso no acontecido não gosto de falar. Somente agora resolvi contar, talvez porque já se passaram 38 anos. Mesmo assim sinto que começa a me correr um calafrio pela espinha. Colocando sua estola e pegando uma garrafa de água-benta que havia trazido embrulhada nos paramentos, começou seu benzimento dizendo:
– Deus meu, proteja o caminho destes pecadores, porque são seus filhos crentes e piedosos. Não os deixe titubear na fé diante do inimigo poderoso, estando perto deles para os proteger. Dai a estes viajantes a força para enfrentar o desconhecido e lhes entregue a salvo em casa. Pela intercessão do padroeiro São Sebastião, de São José que é o protetor do “Doutor da Capital”, de Nossa Senhora Aparecida e todos os Santos, eu os abençoo, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Amém... Assim rezando jogou água em cima de nós e da Toyota.
– Amém, dissemos juntos (eu e Antalpa), mas aquilo me assustou muito e as palavras do “padre santo” nunca mais saíram da minha cabeça.
Nos despedimos agradecendo aquela benção e, antes de nos afastarmos, “Seu Vigário” me chamou para perto.
– Vem cá seu moço. Seu nome de batismo é José, não é mesmo? Disse que sim. Então leva consigo esta garrafa de água. Se for preciso, na hora de qualquer perigo ou aperto, derrame o vidro em volta de vocês. Se não for, guarde em casa, para qualquer outra necessidade...
Agradeci muito, outra vez, e fui com Antalpa procurar um lugar para almoçar. Tinha aceito a sugestão até porque a carretinha que a Toyota - novinha em folha - puxava estava vazia, pois eu já havia deixado o fluviômetro com D. Jocelina, uma professora do Grupo que morava às margens do Rio Paranaíba e que foi indicada como a nova “Observadora Hidrológica” do DNAEE.
Depois do almoço, por volta das 14 horas, colocamos o pé na estrada de volta e não foi difícil encontrar o caminho, porque o Delegado Chico Pedrosa mandou um soldado seu, com um jeep do destacamento, nos guiar, pelos atalhos, até a subida da Serra do Urubu.
Havia percorrido talvez uns quatro quilômetros daquela subida estreita e muito íngreme, que mal dava para passar dois carros de passeio ou um caminhão pequeno e um automóvel. De onde estávamos, olhando para a ribanceira lá embaixo já se via que um tombo ali seria de matar, sem salvação. àquela altura, Antalpa que havia almoçado muito estava sonolento. Cochilava... cochilava... cochilava... Eu dirigia e não estava com sono. Talvez estivesse meio agitado e ia subindo com a Toyota. O frio era terrível! O vento gelava até os ossos!
– Urram... urraaam... urraaam... Urraaam..., rosnava baixinho o jipão e a carretinha, que enchemos com sacos de pedra, para não ir “batendo ferro” pelo caminho.
– Urram... urraaam... urraaam... urraaam..., relaxei mais e o sono já ia quase me pegando, embalado que ficava pelo ronco baixo da Toyota – reduzida em segunda e tracionada nas quatro rodas por causa do peso – quando avistei, adiante, há uns três quilômetros dali, um caminhãozinho vermelho com uma carroceria de madeira. Por puro instinto reagi jogando a Toyota para o lado do morro, na minha contramão de direção, indicando para o outro veículo que ele deveria passar pelo lado do barranco. Era isso ou, ao contrário, eu é que teria que passar raspando na barranqueira e, com aquele frio, só de pensar a perna bambeava.
Percebi, então, que o motorista do caminhão vinha fazendo o mesmo, se encolhendo todo para o lado do morro, na sua mão de direção. Não demorou muito para ficarmos parados, um de frente para o outro. Do caminhãozinho velho saltaram dois homens que me pareceram, desde logo, pai e filho - e eram. Saltei da Toyota.
– Boa tarde, senhor. Boa tarde rapaz. Que frio hem!
– Os senhores vão descendo para Tapiraí, falei tomando a iniciativa.
– Vamos sim e o “dotô” aí da capital está estorvando nossa mão de direção, respondeu o pai.
– Olha... eu sei... mas peço que o senhor considere que eu estou aqui puxando esta carreta pesada que, se eu a jogar para o lado da barranqueira será muito perigoso, argumentei com humildade.
– Se o “dotô” é bom de direção como é bom de prosa, não vai ser difícil não, vai? Disse o mais jovem.
Nesta altura Antalpa já tinha saído da Toyota, deixando que ficassem à vista as duas 9 mm e ensaiou dizer algo, enquanto o frio cortava rente:
– Olhe bem “senhô”... Como é mesmo seu nome?
– Meu nome é Arcanjo dos Santos, sou fazendeiro na cidade de São Jerônimo dos Poções e para cada arma que o senhor tem na cinta nóis tem duas aqui embaladas. Chega?
Vi que a conversa estava tomando um rumo errado e atalhei:
– Me escuta, por favor, coronel Arcanjo, será que...? Fui interrompido:
– Me escuta o sinhô, seu dotô adevogado. O senhô pode ter aconvencido os coronéis de Tapiraí, mas se fosse na minha cidade sua prosa não ia ter força arguma. Nós está na nossa mão certa e é puraqui que nóis vais passar e diga aí pra esse seu jagunço que é deche jeitu ou nóis passa assim ou ninguém vai sair vivo daqui, tenha certeza...
O filho era um perfeito roceiro do “interior brabo”, de “trás do oco da pedra”. Tal como pai, tinha mais ou menos 1,90 m de altura, pés, braços e mãos enormes, cara de menino amarelo, cabelo alourado, bochecha e olhos vermelhos ardidos de pinga, pois o bafo a gente sentia de longe. Só balançava a cabeça, sem tirar as mãos das armas enfiadas na cinta que amarrava, por fora, as calças “pesca-siri”, e estas terminavam curtas nas suas “riunas” de couro cru. A mão só descia da cintura quando, mecanicamente, tirava o lenço quadriculado do bolso das calças, para passar no rosto que suava, apesar do frio intenso, de matar... Não convinha mais alongar aquela batibarba e falei:
– “Tá bem” Cel. Arcanjo. Eu vou contornar, mas o senhor terá que dar ré para que eu possa manobrar e abaixar seu retrovisor, pois ele vai enganchar na Toyota e me jogar barranco abaixo. Caso isso aconteça, a Toyota arrasta nos dois para a ribanceira. O velho falou, então:
– Vou dar ré, mas num mexu no meu caminhão não, inté pruque a peça é sordada.
– Respondi de pronto:Então, “tá bem”. Vou tentar passar assim mesmo.
Dito isso, o homem entrou na cabine do caminhão, deu marcha ré por uns três metros e eu desloquei a Toyota para contorná-lo. Já tinha passado a parte do capô, quando o coronel viu que o espelho ia enganchar na Toyota e, se assim fosse, estando tracionada nas quatro ia acabar mesmo arrastando tudo para o lado do barranco. Os dois veículos certamente iam tombar ribanceira abaixo. Estava acontecendo exatamente o que eu havia previsto. O velho percebeu logo o perigo ocorrendo. A cara do filho era de desespero e do Antalpa também, mas naquela altura era passar ou passar. Segurei a Toyota – reduzida em primeira (que sobe até parede) e avancei disposto a arrancar com tudo. Comigo viria a Toyota, espelho, pedaço de lata, tudo, tudo... Aí, antes que a coisa desse em desgraça, o velho estendeu a manopla para fora, agarrou o retrovisor por suas hastes fixas, com a mão esquerda, fincou a outra no volante e, num puchavão só despregou tudo do carro. A Toyota passou rangendo, raspando rente e eu joguei tudo para o meio da pista, ao mesmo em tempo que olhei pelo retrovisor interno. Vi aí o Coronel Arcanjo me dando adeus com aquele monte de ferros na mão e, do outro lado, o filho sacudindo seu chapéu de palha.
– Que coisa heim, “seu dotô”..., disse Antalpa. Essa foi por pouco. Nos livramos de uma boa lá em Tapiraí e íamos nos atrapalhando agora com um “estrepe de pé”.
O susto fora grande. Apenas assenti com a cabeça. Calado estava, calado continuei...
Antalpa voltou a cochilar e eu no volante ia subindo a serra do Urubu. – Urram... urraaam... urraaam..., pleckt, pleckt, urram... urraaam... É nessa hora que o pensamento voa. Fiquei pensando enquanto o motor ia rangendo na subida forte e o frio cortava, mesmo estando com tudo fechado e só uma frestinha aberta para fazer o ar correr na cabine. Aí falava comigo mesmo:
– É obvio que o mineiro lá atrás já sabia quem eu era, o que fora fazer e, igualmente, que se encontrava muito zangado comigo. Mas por quê? Talvez porque estivesse “pru ladu do pessoá das ligas”, como escutei em Tapiraí. Será? Acho que não. Eles não são pessoas disto. Penso que se doem apenas, e muito, por conta de suas terras, quase sempre deles há várias gerações. Mexer nas mesmas é como aviltar a memória de seus pais e avós ou tocar no local onde estão enterrados. Eu também me zangaria e o embaraço que eu ia criar seria “dos trezentos”. A gente tem que fazer cada coisa na vida... Tudo pela causa, pensei tentando justificar. Contudo vou acompanhar esse caso junto às áreas financeira e técnica da Companhia. Aquela turma não vai destruir coisa alguma sem pagar, e vão ter que pagar bem... Eles têm que entender que tais terras não representam apenas patrimônio, mas fazem parte da vida deles, da sua história e que vida não tem preço. A minha vida, a vida do Presidente dos “States”, do Papa, são todas do mesmo tamanho - começam e terminam de igual forma. Nada é maior do que esse bem de Deus. Não vou ficar em paz se amanhã souber que fizeram uma “ursada” com aquela gente.
Mal sabia eu que o programa de sondagem, naquela região, não iria adiante, por isso que o Governo resolveu, um ano depois, concentrar seu esforço no município vizinho de Patos de Minas, onde inclusive já se tinha uma jazida enorme cubada.
Não demorou a tarde ia cair. Falei com Antalpa:
– Sargento a noite chega logo e é certo que vai nos pegar ainda na subida da serra.
Antalpa fez que sim com a cabeça, mas não falou nada. Dormitava...
A Toyota seguia morro acima, rodando na estrada de chão e lá do alto onde estava me dei conta, olhando barranco abaixo que, no fundo do vale, pregada na outra serra à direita, na direção do horizonte, seguiam vários boiadeiros e uma boiada, e simplesmente cruzando de um lado para o outro, da esquerda para direita, da direita para esquerda, na frente do peão ponteiro e, às vezes, correndo para os fundos da boiada, se encontrava um ponto grande e luminoso, que só um clarão de fogueira. Catuquei o Antaupa.
– O que é aquilo lá embaixo, lá na várzea. Olha! Olha! Olha!
– Hum! Hum! O que é agora seu “dotô”, respondeu.
– Aquilo lá embaixo. Não tá vendo.
– É uma boiada “homê”. É uma boiada seu “dotô”...
– Eu sei Antalpa e aquele clarão na frente, riscando de um lado para o outro?
– Arre égua! “Ó xente”... Credo. É um boitatá, um boitatá, meu Deus! Credo!
– Antalpa não me apurrinhe, não debocha. Boitatá? A essa altura dos acontecimentos, quando o homem já foi à Lua há quase 15 anos atrás, assim não dá, tentei colocar razão na história.
– Se o “dotô” não crê, por que tá me perguntando? Então diga o “dotô”, homem de muita “leitiura”, o que o senhor está vendo então?
– Sei lá Antalpa. Sei lá o que falta para acontecer nessa viagem. O que é boitatá? Voltei a perguntar e o velho sargento se pôs a explicar.
– Boitatá começa como uma “coivara de forgo”, mas chegando perto ele vai se transformando num “boi de luz e de forgo”. Ele não gosta de boiadeiro, porque os “cabra” são doidos pra tocar fogo na mata e plantar capim. É com fogo que eles roçam o campo. A mata é dele, seu “dotô” e do Curupira também.
– Curupira? Assim é demais, e suspirei fundo, Ahm...
– Mas é seu “dotô”. Meu pai dizia, lá no sertão, que o boitatá é uma “besta de forgo”, um boi marrão, de cabeça vermelha, sempre bufando, chifrando o ar “prum lado, pru outro” e a balançar o seu conhecido badalo de ferro amarrado no pescoço. Dizia que foi o Saci quem amarrou lá.
– Não estou escutando nada... duvidei ainda.
– Claro! Nós estamos há muitas léguas de lá. O bicho vai atrás do peão ponteiro e fica atazanando a vida dele, por mais que o pobre se benza, até que o Chefe da Comitiva lhe entregue uma “vaca velha” ou um “boi de piranha” para ele “madrinhar”.
Ficamos os dois calados. A luz estava lá riscando na frente da boiada, pra lá e pra cá e às vezes sumia. De onde a Toyota ia rodando não avistamos mais nada. A boiada entrou num atalho, havia passado e só ficou para trás um bicho criado. Talvez fosse a “vaca velha” entregue para aquele “bicho da noite”.
Pretendia pedir ao Antaupa para pegar o volante, mas gosto de dirigir e percebi que ele estava cansado. Enquanto estávamos na lida, lá na cidade, o danado, por três dias, mal dormiu. Sempre que saía do quarto da pensão para ir ao banheiro, no corredor, o quarto da frente estava com as luzes acesas e o velho sargento acordado.
À medida que a noite ia chegando, o frio aumentava e estava difícil suportar, por mais que a gente se encolhesse. A Toyota seguia em frente. Urram... urraaam... urraaam... pleckt, pleckt. Eu, com o corpo escorado na porta, trancada com os vidros todos fechados, encolhido com a mão direita no volante, a outra dentro do casaco e o pé no acelerador, quase cochilava também, pode crer.
Deviam faltar uns quatro quilômetros para o alto da serra, depois mais um tanto de decida, e dois até sair em Campos Altos, para dali pegar o asfalto, em Araxá - não era longe.
Enquanto isso, percebi que a sensação térmica diminuíra e que o vento soprava mais forte e mais frio... mais frio... Olhando para frente e para o alto, na direção dos barrancos da estrada, situados mais adiante, percebi que pastava um rebanho de cabritos, iguais a outros fatos que havia visto anteriormente, todos em volta de uma pedra enorme, de uns quatro ou cinco metros de altura (grande mesmo), que despontava no meio da barranqueira, toda formada de branquearia que ia avançando sobre o “capim gordura”.
O sono começava a pegar. Insistia... E pegava... Insistia... Acho até que dei uma ou duas cabeçadas e me assustei... Endireitei-me no volante e aumentei a velocidade. A Toyota subiu urrando. Urram... urraaam... quando, meio zonzeira – eu acho – finquei os olhos no pedrão lá adiante e assustado falei comigo:
– Eu hem! Acho que já estou vendo bichinho. A pedra se mexeu? Besteira pura. Voltei a descansar, mas o pensamento não deu trégua. A pedra se mexeu sim... Não... não mexeu, não... Dali a pouco, a Toyota deu um solavancão justo quando eu tentava desviar o olhar da tal pedra. Hum! A pedra se mexeu? Mexeu novamente. Desta vez não há dúvida. E mexeu para cima. Mexeu para cima? Assim não dá, pô. Será que eu estou tendo um troço? Ai meu Deus, só faltava essa agora...
Não vou engolir isso assim não. Cumpre resistir. Fiquei firme no volante. Antalpa dormia de cabeça virada para trás e de boca aberta, ressonava... E mais essa, continuei pensando...
Obriguei-me, então, a olhar para frente, mirando o horizonte, o fim da estrada e o ponto mais alto da serra. Não deu certo e logo que titubeava olhava o pedregulho. Toda vez que olhava, ele subia um tanto. Rolava para cima, de forma que todos os cabritos estavam ficando para trás. Só um pequenino cabrito preto, que havia se desgarrado do fato se encontrava pastando num plano acima, no caminho da pedra que, desgraçadamente insistia em subir.
O medo, meus amigos, é uma coisa incrível. Não sou um estudioso da natureza humana, mas, segundo dizem, é o mais fantástico mecanismo que funciona em nós. O medo é uma força complexa, incontrolável depois de certo ponto e os doutos dizem que não há outra que mais se disponha a transtornar a mente do homem. O medo leva ao imponderável e de tal forma que, até aos mais firmes e tranquilos de cabeça, (quando tal coisa domina), pode maquinar terríveis alucinações. Mesmo em relação ao mais nobre dos sentimentos (o amor), o mal do ciúme – que não é outra coisa senão o medo de perder a pessoa amada – pode levar o amante a destruir sua paixão. Parece que aqueles em quem menos devia influenciar, porque treinados para o embate, para enfrentar o inesperado, o desconhecido, são justamente os mais atingidos. Há notícias, por exemplo, na Segunda Guerra Mundial, no sentido de que os veteranos heróis de antigas batalhas, diante do perigo iminente, mas claramente reversível, de nada mais se deram conta e, em vez de se defenderem ou se resguardarem, se atiraram de corpo e alma contra a sanha do inimigo. A este chamo de terror, de pânico. Penso que foi justamente o que aconteceu comigo e com meu companheiro Antalpa.
Olhei a pedra mais uma vez. Ficou paradinha..., paradinha... De repente subiu e, desta vez, subiu bem: “Ai, meu Deus! Que coisa louca...”, continuei falando comigo mesmo:
– Ai, meu Deus! Me ajuda meu pai... Me ajuda... O horror tinha roubado minha energia. Minha garganta deu um nó, se eriçaram os pelos do braço e a boca começou a ressecar. Procurando saliva para falar e me manter calmo, buscando ainda um resto de controle, chamei baixinho meu companheiro Antalpa.
– Antalpa... Antalpa... Acorda homem.
– Ah... Hum... de novo seu “dotô”. O que é agora? Falou acordando.
– Antalpa olhe aquela pedra lá adiante.
Antalpa olhava para cima, para o alto do morro, para o horizonte e até para o chão do carro. Olhava e nada via:
– “Num tô” vendo pedra alguma, seu “dotô”.
– Não é aqui dentro. Olha pra baixo Antalpa, no barranco. O homem virou a cabeça.
– “Tô vendo”, é uma pedra. É das grandes e daí? Disse então:
– Olha de novo a bicha tá rolando para cima...
Antalpa olhou de novo, firmou a vista e já ia retrucar quando a “baita” se mexeu bem... e para cima. Falou alto:
– Que diabos é aquilo seu “dotô”? O pedrão ta rolando pra riba.
Aí eu retruquei:
– É isso que “to” falando e você aí dormindo de boca aberta.
– Pedra não rola pra cima seu “dotô”. Isso é “invinsão”.
– E o que é “invinsão” Antalpa?
– Ora é “invinsão”. Num sabe não? Num sabe? Então aperta o passo e “vamo rompê” lá no alto e deixar essa coisa pra trás. Disse assim e já desabotoou o casaco e pôs a mão na 9 mm.
Foi o que fiz. Acelerei a Toyota, me deslocando com maior velocidade, mas estava de olho na pedra e Antalpa também. Acelerava e a pedra subia mais rápido. Reduzia a velocidade e a bicha rolava pouco. Acelerava e ela corria. Diminuía e ela diminuía. Do jeito que ia, estava medindo certo e calculando corretamente o local e a hora que ia me acertar, justamente quando eu cruzasse com ela. Continuei naquele jogo “de gato e rato” por quase um quarto de hora que, entretanto, pareceu um século. Antalpa, cada vez mais assustado, não despregava o olho da “coisa”.
Alcançamos um ponto de onde a gente podia vê-la melhor, apesar de ter se aproximado a “boquinha da noite”, onde “todos os gatos são pardos” e o “lusco-fusco” embaralha a vista. Disse aí:
– Veja Antalpa. Veja bem. A pedra tem uma cabeça avermelhada, enfiada no tronco e duas pranchas de lado. São dois braços chapados que ajudam ela a subir. Veja Antalpa, o fundo dela tem um buraco vermelho. Que diabos é aquilo, homem de Deus? Perguntei já aflito. A boca ressecava cada vez mais...
Jamais tinha visto Antalpa com medo. Sua cara espelhava puro horror. Ele estava simplesmente aterrorizado, com os olhos esbugalhados e a respiração ofegante. Não era bonito não, nunca mais vou esquecer aquela cena. Naquela altura, com a arma na mão, Antalpa abaixou o vidro do seu lado. O vento entrou cortando como um catiço, gelando a cabine, meu corpo e minha alma também. O cérebro estava confuso. A vista não respondia bem ao que via, e a serenidade havia ido embora...
Foi justamente nesse momento que escutei o “CLICKT/CLICKT” da arma do Antalpa, em seguida... PERRRSSS... um tiro do meu lado... e o grito rouco de pavor do meu companheiro, misturado com um choro de tristeza e de desespero:
– Valei-me meu santo. Me socorre Nossa Senhora. É o tinhoso “dotô”. É o capeta. É ele... é ele, sim. Veio buscar nós, meu “dotô”. Para aí “dotô”. Para aí homem, pelo amor que “vancê" tem a Deus...
Levei um susto enorme. O pavor tomou conta de mim. A perna tremeu, senti como que um soco na nuca, em seguida um calafrio até o final da espinha e perdi inteiramente o controle do carro. Pisei no freio sem debrear e a Toyota morreu, parou engrenada e tracionada. Antalpa abriu a porta e ficou lá, se tremendo todo, babando de tal modo que pensei que ia ter um ataque epilético, olhando para a pedra com a cabeça espichada para fora, embora sentado ainda no banco do carro.
O pedregulho avançou mais um pouco para cima da estrada. Virou um tanto para o nosso lado e foi de encontro ao o cabritinho preto desgarrado do rebanho. Antalpa continuou gritando e chorando convulsivamente:
– O “danado” engoliu o bichinho... engoliu o bichinho, meu Deus! Meu Deus!
– Engoliu nada, retruquei com a voz tremendo de medo.
– Engoliu sim. Olha! Olha pelo amor da Santa. Valei-me minha Madrinha, o desgraçado está obrando o coitado em “trampas de forgo”. Meu Deus, que é isso...? Meu Deus, nos salve!!!
Estava descontrolado, não raciocinava mais nada. Passei a mão na minha carteira e de lá tirei a figura de prata da Nossa Senhora da Medalha Milagrosa – que dela nunca me apartei e que comigo vai pra última morada – e botei entre os dentes. Uma das mão ficou no volante e a outra mão, instintivamente, correu na cintura e a 9 mm veio engatilhada. Aí ouvi Antalpa gritando de novo:
– Olha! Olha! Olha! Pelo amor de Deus! O capeta está derramando o sangue do coitado em diarreia, parece até um “vumíto de vurcão”. Valei-me minha santa. Nós “vai” morrer aqui seu “dotô”.
Segurando minha medalha com a mão esquerda, consegui falar, gritando também:
– Calma, calma Antalpa. Seja o que for, vamos enfrentar. Já topamos com outras companheiro, disse com convicção.
– Ai seu dotô, enfrentamos sim, mas o tinhoso não... falou triste, cheio de desesperança e chorando, chorando muito...
– Reza meu companheiro. Reza. Se agarre com Deus também que é santo mais velho. “To” aqui com minha “medalha”, que minha mãe me deu. Nada vai nos derrotar.
Mas a pedra rolou. Rolou mais depressa e chegou na estrada, e aí começou a descer em nossa direção. Era um pedregulho que dava umas três Toyotas de altura. Uma loucura. Nisto o vento frio bateu em nós e já estávamos fora do carro. Com ele veio um cheiro terrível de enxofre, que entupiu nossas narinas.
– Credo! Credo é o cheiro do demo! O capeta obra vermelho, fede a enxofre! É ele... é ele sim e vai nos pegar “dotô”, disse Antalpa.
Não tinha mais dúvida de que a coisa “tava feia”. Não sabia o que era, mas o que via era um horror. Devorou o cabritinho na nossa frente... O que que é isso? Comecei a rezar alto, dizendo a Ave-Maria. Antalpa rezava comigo e nós dois, àquela altura, de pé na frente da Toyota, no meio da pista com as duas 9 mm., uma em cada mão, esperávamos um milagre ou o nosso fim, porque aquela pedra com mais de 20 toneladas, seguramente ia passar por cima de nos, de nossas armas e da Toyota, ou nos engolir para, em seguida, esparramar nosso sangue pela estrada. A pedra chegou a uns 40 metros de nós dois. O cheiro de enxofre sufocava a minha respiração e, misturado com o vento gelado, me deixava descompensado, ofegante, com o corpo trêmulo, suando frio, com a boca seca e atingido no espírito. Pouco ou nada raciocinava logicamente. Justo naquela hora pensei no “Seu Vigário”, na água-benta trazida, mas minhas pernas estavam pregadas no chão. Não consegui voltar para a Toyota, não consegui por mais que quisesse. Só pensava no que estava por vir. Foi, então, que ouvimos o vidro do carro estourar atrás da gente, parecendo que tinha se quebrado e espalhado cacos para todo lado. Caramba a coisa está destruindo o carro... está destruindo o carro, pensei....
– Atira “dotô”. Atira nesse demônio. Mata! Arromba esse desgraçado. Ele vai nos levar sim, mas com o corpo crivado de bala, berrava Antalpa. Era puro desespero. Meu Deus, que horror!
Estava paralisado, estatelado, em pânico, diante do desconhecido, mas berrei de volta desesperado... desesperado:
– Pois venha! Venha bicho do mal! Venha coisa ruim! Venha cão! Vem me pegar “filho das trevas”!
E berrei, então, mais alto ainda, já com a voz tremula e embargada pelo choro convulsivo:
– Vem me pegar “tinhoso”. Vou mergulhar com você inferno adentro. Lá corto sua cabeça com a “lâmina da minha medalha”. Arranco ela... Arranco ela pelos “carapinhas”. Vou pular de lá arrastando sua carranca nojenta. Vou nas asas dos anjos da Minha Madrinha no Céu que vão me buscar. Vem maldito! Venha logo! Vem agora! Vem filho do cão!
A coisa me escutou... Emitiu um ronco abafado e fedeu mais ainda a enxofre. Parou. Cresceu. Ficou de pé. Olhou a gente, encarou... encarou... Se postou parado, olhando... olhando... Os olhos vermelhos e a bunda fumegando. Deu a impressão que ia, a qualquer instante, sair rodando e nos esmagar. Ia mesmo. Era certo... Não tínhamos mais o que fazer. Assim dizendo a Ave-Maria aos berros e aos prantos, descarregamos no troço quatro pentes de “17”. Os canos das armas enrubesceram. A bicha começou a vazar uma fumaça amarela, o cheiro de enxofre aumentou, mas ela deu uma murchada. Deu uns “tremeliques”, tombou um pouco para trás e esvaziou de vez. Não era nada, só um enorme “balão homem”, pardo como uma rocha, que haviam de ter soltado numa festa de São João. Enquanto isso nós dois, entre o envergonhado e o extenuado, enfraquecidos, sentamos no para-choque da Toyota e começamos a chorar, a rir, a chorar, a rir... a rir... tudo de nervoso.
Antalpa tomou a frente, andou até o balão, pisou nele todo, separou a bucha que ainda estava acesa e jogou todo resto barranqueira abaixo. Entramos de volta no jeep, toquei em frente e, ao passar pelo local onde o balão ganhou a estrada, Antalpa pediu para dar uma “paradinha”. Saltou do carro, foi lá atrás, olhou para baixo no barranco e para o lado do morro, voltou, sentou no carro e disse:
– Vamos embora. Tá tudo certo, só que o cabritinho sumiu e no lugar onde o balão entrou na estrada, marcado no barranco, no chão e no morro “pra riba” estão lá cravadas umas pegadas de “pé de bode”, com três unhas cada, de mais ou menos dois palmos de altura, por um de largura. Mas “vamu” em frente, seu “dotô”.
Arranquei com o jipão. Lembrei-me então da água do padre. Parei o carro. Comecei a procurar sob os olhos atentos de Antalpa, que sabia o que eu estava querendo. Revistei tudo, nada... Olhei no banco traseiro, onde eu havia colocado a garrafa, nada... No porta-luvas, nada... Catuquei os bancos, nada... Antalpa calado procurava também e nada. Nisto olhei para o chão do carro, na parte de trás e vi que a garrafa tinha estourado e a água se esparramou toda e correu para debaixo dos nossos pés. Foi esse barulho de vidro quebrado que, na hora “do agarra esta pemba”, havíamos escutado. Então falei decidido:
– Chega. Pra mim chega. Agora você dirige companheiro, que eu vou descansar...
Sentado no lugar de Antalpa, comecei a relaxar e foi aí que as palavras do “Seu Vigário” me vieram à cabeça e pensei comigo mesmo:
– Meu Deus será que ele sabia o que ia nos acontecer? O corpo arrepiou todo, mais uma vez...
Pegamos o asfalto e a viagem de volta transcorreu, dali para frente, sem problema algum. Dormimos, na volta, em Varginha, MG, e no caminho combinamos (eu e Antalpa), que não contaríamos nosso vexame a ninguém, principalmente para Clynton e Jobá, para escaparmos das gozações.
Dali a mais um dia eu já estava na sala do diretor relatando o que tinha acontecido em Tapiraí e o que ficou combinado com os fazendeiros, mostrando o protocolo assinado e tudo o mais. Os ali presentes, Clynton e Jobá, já sabiam de tudo. Antes que eu regressasse à base, o serviço de inteligência os havia colocado a par do sucesso da missão. Ambos me agradeceram muito, ressaltando a economia que isso poderia trazer para os cofres públicos, o progresso que representava para aquela região e para o Brasil, enfim.
Já ia deixando o ambiente, quando Jobá me chamou de volta e disse:
– Espera aí menino. O pessoal da área de segurança está boquiaberto porque você conseguiu contornar o problema “com os pés nas costas”. Disse que você encantou os fazendeiros, o Prefeito, o Vigário e os convenceu totalmente. Estão falando que os “caras” hoje são nossos “fãs de carteirinha”. O que afinal você arrumou com aquela gente? O que você prometeu a eles? Vai contando...
– Nada. Nada de mais Comandante. Depois de muita conversa, fechei “o negócio” com eles, e aí, em seu nome, convidei a todos – uns vinte – para a sua expensas passar uma semana aqui no Rio. Assegurei que o senhor, sendo um homem do mar, vai levá-los para passear de iate por todo “esse marzão besta afora” e tudo “de grátis”. Eles amanhã “tão” chegando aqui...
A última visão que tive dos dois, naquele dia, foi de Jobá com os cotovelos fincados na mesa e as duas mãos segurando a cabeça, olhando para baixo, balançando a mesma de um lado para outro e de Clynton, rindo entre os dentes, falando para ele:
– Agora aguenta essa “Seu Diretor...”
José Mauricio de Barcellos
Verão de 2010
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A CASA DE D. ANTONINA
Tudo aconteceu ai no meado da década de 70. Tempo da Revolução de 1964. Presidente forte com regime militar comendo solto e um jovem advogado do Governo, atuando na área de mineração.
Quem viu sabe e por certo ainda se lembra. Tudo na época era considerado de extrema importância para o futuro do Brasil. Minério, então, nem se diga. Nossas riquezas, ou seja, aquilo pelo qual morreram os patriotas era, sem dúvida, "Questão de Segurança Nacional".
Justo assim, nesse clima, foi o jovem advogado enviado para o interior de Minas - afinal lá é que ficam as Minas Gerais - para as beiras do Velho Chico, nas terras próximas à Pirapora, de onde a Gaiola começa a subir o rio e vai até Sobradinho, no sertão da Bahia, nas bandas do Salto das Sete Quedas, lá onde o sertão virou mar. Também aconteceu e ele estava lá. Por isso bem avalia o que diz a canção: - dá no coração o medo de um dia o mar também virar sertão....
A cidadezinha não era diferente de qualquer outra do interior deste País, há trinta ou quarenta anos. Ruas de chão, uma praça calçada, um coreto na praça, um jardim em volta com flores de lá mesmo, a igreja do Seu Vigário - muitos anos de paróquia, havia batizado e casado a população inteira - o xadrez, a velha cadeia que virou sede da Prefeitura, o armazém de secos e molhados que não faltavam os mantimentos para mistura, uns botecos com pinga boa e pura e, bem afastada no lado de baixo, depois da "curva virada", como diziam os de lá, "no caminho pru interior", a casa de D. Antonina - a "Casa das Meninas".
A missão que vinha de Brasília e seria um grande acontecimento. Os homens e o "dotô da capital" haviam de ser recebidos com a velha hospitalidade mineira. Mas onde colocar essa gente se a cidade nunca teve hotel ou pousada?
A dúvida tomou conta de todo o povo. Virou debate obrigatório naquela semana e, depois de muita conjectura, resolveu-se, para não transparecer que a cidade não tinha hotel mesmo, sob os protestos veementes do Seu Vigário, acomodar os forasteiros na casa de D. Antonina, que hotel não deixava de ser.
Seu Prefeito se encarregou de chamar D. Antonina que apesar de tudo e da casa mal afamada, era mulher piedosa, ajudava nas obras sociais e fazia muita caridade: - Veja lá D. Antonina, foi logo dizendo, não vá permitir que suas meninas se misturem com o pessoal da capital, embora essa gente, como estão falando as beatas, "não vá nem olhar p'ra aquelas fulaninhas".
Outros locais, também usados em ocasiões como essa, eram a casa paroquial e algumas fazendas. A casa do Sr. Vigário estava ocupada por seus parentes em férias e as fazendas tinham o inconveniente das distâncias do centro das brigas entre os coronéis. Por causa de tudo isso acabou o jovem com sua comitiva, hospedados com D. Antonina. Foi uma experiência singular contou-me ele um dia.
Foram recebidos como príncipes. Tudo que de melhor havia lhes era destinado. As acomodações, os quartos de dormir e de banho, as roupas de cama e mesa, os serviços de prata antiga, as porcelanas e os cristais. Os lugares eram sempre limpos, asseados, todos tinham um loque de aconchego e carinho, que lhes mantinha cativos de qualquer espaço, de qualquer cantinho.
Pela manhã, o café vinha servido na copa, perto da cozinha. Era uma sala ampla, com uma enorme mesa de centro cercada de louceiros e despenseiros de cerejeira, com tampa de mármore e vidros de cristal bisotado. Ali eram postas as bandejas com as iguarias. Tinha café com leite fresco, manteiga da roça, pão francês, brioches, pão caseiro de trigo e de milho, bolo, bolinhos, broas de fubá, rosca de frigideira, biscoito de polvilho, de nata, bolachas de sal, queijo branco, amarelo, requeijão, geléias, doces de abóbora, mamão, banana, sucos de laranja, de maracujá de pitanga, e não sei mais o quê.
Era com muito esforço que ele deixava o café para ir trabalhar. O trabalho no acampamento, ensolarado, abafado, cheio de surpresas, com o velho rádio DK-6, "rabo quente", a transmitir zunindo e zumbindo as ordens e as notícias do Ministério, era um tormento. Mal se via, todo santo dia, chegar a hora de voltar p’ra Casa da D. Antonina.
Quando voltavam, na boquinha da noite, a função já tinha começado, e, naqueles dias, estava apinhada de gente. Todos os homens da cidade estavam lá: os vendedores, os comerciantes, os botiquineiros, os fazendeiros, os políticos, os vereadores e o prefeito, só não se via ali o "Seu Vigário" mas, ninguém se engane, o sacristão estava lá.
Ele chegava saltava da Rural-Willys, na frente da comitiva que vinha de Jeep, atravessava o jardim e a varanda ornada de redes do balanço rendadas de branco e entrava no salão principal. Um espanto. Era uma enorme sala com as paredes revestidas de veludo grená, com cortinas de seda e brocados verdes escuro, toda forrada de tapete azul. Na grande sala, com um pé direito de 4 metros de altura, acanteada com lugares e lugarzinhos protegidos por biombos que disfarçavam berger's de gobelen. Tinha bem no centro um sofá redondo, em 360 graus, com um cone de madeira no meio, forrado de couro legítimo com franjas e capitonê, onde ficavam as meninas.
Ao fundo, do lado direito, estava uma enorme poltrona de balanço, também em couro, de onde D. Antonina fiscalizava a função. Fiscalizava, mas se dizia não participava e nem era percebida.
Atrás dela, mais para esquerda, tocavam três artistas da região. Três músicos, velhos e discretos como pedia a situação. Um cravo, uma flauta e um violão.
Mas era só transpor a porta da frente que o conjunto parava de tocar. Era o sinal que a função estava interrompida e que assim permaneceria até que o jovem dissesse: - Prossiga.... Era uma sensação formidável que seus vinte anos jamais experimentaram e que lhe sugeria sentimentos fantásticos: - Prossiga, por favor, prossiga.....
Logo, logo, ficavam cercados pelos presentes. Vinham o prefeito, os comerciantes, os políticos e a prosa se constituía. Então, "Seu dotô, essa Revolução veio mesmo pra ficar". É verdade que tem gente presa, em penca, lá na capital? Será que eles acabam mesmos com esses tais de comunistas? E essas comunas, "Seu dotô", são mesmo ruins assim? Matam até as criancinhas"?
O jovem advogado falava sério, doutrinava a vontade, dizendo na verdade o que queriam ouvir e ainda sobrava tempo para contar umas vantagens como carioca nascido e criado na beira da praia. "Eta marzão besta", invariavelmente exclamava um atento ouvinte.
Todo dia era a mesma coisa. Enquanto ele falava, por mais que tentasse e disfarçasse, não conseguia desviar os olhos de uma lourinha linda. Meu Deus que encanto de criatura! Jamais ele voltou a ter na vida outra visão tão doce. Loura, loura, loura como as espigas, como as moedas antigas... Os olhos azuis, pequenos, mas fatais. O corpo de mulher, o jeito de menina, os dentes perfeitos, a boca vermelha e uma pele rosada que você jurava, que por homem algum jamais foi tocada. Tudo nela devia ser rosado e seu sorriso uma rajada de alegria do tipo que envolve, prende e fulmina. Nunca soube qual era o seu nome, nunca soube.... Jamais se perdoou por isso.
Jantar! Olha o jantar! Surgia dizendo D. Antonina tirando-os, delicadamente dali e levando-os para outro lado da casa, colocando-os em outra sala, longe da função.
Novamente eram cobertos de atenção. Vinha o jantar. Era servida uma infinidade de terrinas, travessas e sopeiras de porcelana fina. Feijão de quatro tipos, arroz branco, colorido, de carreteiro; saladas, de maionese caseira; de legumes frescos; galinha ao molho pardo e frita, junto com carne de carneiro, de boi e de porco. Bolinhos de legumes, bolinho de arroz, ensopadinho, comida de panelada, doces, pudins e suco de pitanga.
A velha cozinheira de D. Antonina não lhes dava trégua. Havia recebido ordem para tanto, mas depois gostou da tarefa e, ao menor movimento deles, lá vinha com uma ofertazinha aqui, um agrado acolá, com o carinho que só as antigas amas de leite sabem dar.
No meio do jantar vinha D.Antonina, clara, cabelos castanhos, gorda, simpática e cheirosa. Era uma mulher muito séria. Nada tinha de vulgar nem de leviano. Nunca homem algum se engraçou com ela. Nunca. Dizem que havia chegado, há muitos anos da Capital e que era filha de uma família rica e importante. Falava-se, a boca pequena, que tinha fugido de um grande caso de amor havido na sua cidade. Dizia-se que sua paixão veio atrás e que comprara uma fazenda numa cidade, adiante dali, só para ficar perto dela. Era lá que D.Antonina devia ir toda segunda-feira.
Na segunda-feira não tinha função. D. Antonina saía bem cedo, sozinha, sempre sozinha, Tirava seu velho Chevrolet 1951- Belair da garagem, ele contou: - era cinza, traseira arriada, câmbio no volante, com alavanca de madrepérola e pneus de banda branca - e só voltava à noite, quando as meninas estavam na cama, por ordem da velha cozinheira.
Na medida em que se aproximava o dia de ir embora, uma idéia fixa ia tomando conta do jovem. Precisa retribuir. Carecia agradecer, tinha que e se despedir daquela gente com um grande gesto. Estava resolvido. No meio de todo mundo, reverenciaria D. Antonina como uma grande dama. Por que não?
Falou pelo rádio com a capital. Disse ao seu motorista que, no domingo, quando viesse buscar de volta o pessoal trouxesse a maior e a mais bonita ramada de flores que pudesse conseguir. Recomendou: - "quero rosas, muitas rosas vermelhas, palmas brancas e crisântemos de todas as cores, as flores da paz e dos amores".
Foi como ocorreu. No domingo à tarde, no meio da função, já com as malas e a comitiva acomodadas nos carros, pois já tinham agradecido e cumprimentado todos - do menino da limpeza até D. Antonina, com demorados abraços para a velha cozinheira e beijos nas meninas - entrou ele novamente e pela última vez, no salão principal, só que, desta vez, agarrado àquela enorme braçada de flores.
O conjunto parou. D. Antonina trajada de seda num belo vestido rosa palha, com seu indefectível prendedor de madrepérola colocado no lado esquerdo do cabelo e o inesquecível decote, virou-se, lentamente, como se já soubesse o que ia acontecer. O jovem atravessou o salão, parou diante dela, inclinou-se no melhor estilo velho e, assim, de corpo e alma ajoelhados, beijou-lhe as mãos e entregou, sem dizer uma palavra, o enorme buquê de flores. Os olhos da velha senhora marejaram e houve choro por toda sala.
Retornou. Parou junto à porta de saída e, pela última vez, disse ao conjunto: Prossigam .... prossigam.... e, por favor, não parem nunca mais, para quem quer que seja.
Esta, entretanto, não foi a maior emoção que ele viveu naqueles dias. Não conseguiu esconder ao contar.
Na noite de sábado, na derradeira noite, já estava deitado, olhando para o teto, sonhando acordado, pensando na vida, quando bateram na porta. Levantou-se convencido de que deveria ser a velha cozinheira, com seu copo de leite, leite queimado, o último mimo da noite. Mas não era.
Era ela, aquela diabinha. Deus meu! Que doce criatura, pensou ele. O corpo de mulher, o jeito de menina, os olhos azuis o colo rosado. Tudo nela devia ser rosado. Contudo, mais suave que isso era sua voz. A voz de um anjo ao falar, se o anjo tem voz.
O jovem gelou. Parado, perplexo, sem saber o que fazer. Ela tomou a iniciativa, a dianteira e foi logo dizendo com carinho e humildade: - "Seu dotô", antes que o Sr. vá simbora, eu quero clamar uma coisa que tá na minha garganta, desde a primeira hora que o vi".
Ele pensou: - Meu Deus! Não há quem possa resistir. Ela continuou: - "Sabe seu dotô, eu não vou ficar por aqui muito tempo não. Quando eu for simbora, vou estudar lá na Capital. Eu quero ser "adevogada" como o "sinhô" p'ra cuidar dos direitos do meu povo, de minha gente que se acaba de trabalhar nas terras dos Coronéis. O "sinhô" acha que eu posso? Não me diga que não, por favor..."
A voz custou a sair da garganta, mas buscando o equilíbrio respondeu: - Não digo não minha menina, pois tenho certeza que você não será advogada como eu, mas será a mais linda advogada que o Forum da Capital já viu.
O sorriso que deixou escapar nunca mais lhe abandonou na vida. Então ela fez menção de ir embora, mas deu meia volta, parou na ponta dos pés, segurou seu rosto com as duas mãos e lhe deu um beijo demorado...., no canto da boca.
Nunca mais ele a viu. Nunca mais esqueceu-se dela. Certamente aprendeu a amar com todas elas e, creiam, sem jamais as possuir.
Verão de 2002 José Maurício de Barcellos
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A BISNETA DE JANGO JORGE
Foi no final da década de 70 quando, pela primeira vez, ouvi falar de Jango Jorge - "o contrabandista".
Naquela época, andava eu e meu parceiro José Roberto, por força de oficio, pelas bandas do extremo Sul deste País. Viajávamos tanto em busca das audiências, de um Juiz ali para a outro acolá, cruzando a "Região das Missões" que, numa tarde ruim meu parceiro ficou no caminho, por causa do cochilo de um carreteiro desastrado. Nunca mais o vi.
Assim aumentaram minhas idas e vindas e minhas andanças pelos campos de gado e de arroz.
Depois de um dia de céu claro e muito frio, na boquinha da noite e com muitas horas de estradas ainda pela frente, meu motorista, gaúcho daquelas bandas, foi logo falando: Bah! "Seu dotô" não vamos avançar mais.... A noite chega logo e o frio nesta terra do Rio Grande é perverso.... Conheço adiante a estância de um compadre, "guapo" dos bons, que vai se agradar de nos ver. Se a casa do amigo não for do seu gosto, o galpão eu garanto. Não faltarão uma boa prosa e o chimarrão.
Foi dito e feito. A casa do compadre era um mimo precioso. Toda de madeira pintada, de chão de tábuas, de teto trabalhado, com cortinas bordadas de flor, crianças loiras por todo lado e uma mesa no centro, rodeada de guris, tão hospitaleira e farta quanto a dona da casa.
Fomos chegando sob os abraços grandes e apertados do gaúcho, cujos bigodes combinavam com os meus e com suas bombachas. A criançada com movimentos iguais abriu espaços, enquanto a mãe e a guria mais velha colocavam os novos pratos na mesa.
Comeu-se de tudo. Muita carne e arroz de todo jeito, para depois enfrentar ainda os doces, as tortas e as compotas com creme. Não nos restou outra chance senão ir bater no galpão, para matear e solver a comilança.
A bem querência foi igual. No velho galpão - não há estância sem gaúcho, sem cavalo e sem galpão - a roda em torno do fogo e da chaleira se abriu de pronto, para receber os forasteiros e logo a prosa virou p¢®¯ro nosso lado.
- Ouvi dizer que o moço é "doutô" lá da Capital. E, então, como é que "vancês" estão se vendo com o General. Ele é gaúcho e do bom.
Daí pra conversa parar em Getúlio Vargas e nas histórias do Rio Grande foi num instante, O papo já andava alto quando, puxando um cavalo, passou pela roda e seguiu adiante, até amarrar o baio num tronco do outro lado, uma guria lindíssima, de cabelos negros e cumpridos, por debaixo do chapéu, pele clara, olhos rasgados e pretinhos, face rosada, os lábios vermelhos, de tal forma discreta que mais parecia uma aparição.
Desapetrechou da sela um monte de pacotes, amarrados embrulhos e amassados, botou tudo em dois bornais e, passando de volta com a mesma graça que chegou, tomou a benção ao mais velho da roda e olhou pra cada um de nós de relance.
A conversa parou de repente e, com uma única voz os homens disseram com respeito: Boa noite Dona Menina!
Respondeu ela: "Tô chegada ô de casa..."
Não sei bem por qual razão, talvez para quebrar o impacto daquela visão e conseguir me recompor, arrisquei uma gracinha que, para bem pensar, melhor seria ter ficado calado, como diria minha mãe.
Por essas bandas também já tem mulher no galpão?
- Não sinhô.
- E essa aí? Não é uma guria não?
- É sim "sinhô".
- E então?
Bem se vê que o moço não é daqui. É guria sim, mas dizem até que é bisneta de Jango Jorge. Se é ou não, ninguém por essas bandas vai assuntar, e se o moço tem o estudo que diz, sabe bem quem foi Jango Jorge, porque o grande Simão Lopes "já cantou ele pro Brasil e pro exterior".
Meu amigo saiu logo em meu socorro: - É verdade "dotô". Falamos nele na última viagem. O "sinhô" não se "alembra"? Mas "cumpadre" conta para o "dotô" as histórias do gauchão....
- Não conto não compadre. Não tenho prosa para falar do Jango Jorge, não aqui na frente do meu vô - que o pai campeou com ele perto do velho Jango morrer.
- Pois fale o sinhô" seu Leutério. Conta para o moço da Capital quem foi esse gaúcho "quebralhão i despilchado".
O velho não se fez de rogado. Ajeitou-se na banqueta, passou a mão na chaleira, encheu a cuia de água, deu uma puxada na bomba e se pôs a falar.
- O que vou contar ta tudo bem dito nos "Contos Gauchescos" de João Simões Lopes. O "dotô" quer ouvir?
Assenti, com a cabeça, e o gaúcho pôs-se a falar.
-Quando meu pai conheceu Jango Jorge ele andava perto dos noventa. Foi o maior capitão duma maloca de contrabandistas que já teve nessas bandas. Era um gaúcho sem paradeiro, desabutinado. Não tinha tempo para cavalgar esses campos, fosse à luz do sol ou na escuridão das noites. Não havia frio ou cerração que lhe cercasse, nunca negou uma empeleitada.
-Simão Lopes falava que ele conhecia os campos pelo faro e que até pelo gosto dizia qual era o tipo de parada, se de água salobra ou limpa e boa para os camaradas.
-Nessa terra do Rio Grande, mesmo antes da tomada das "Missões" se contrabandeava tudo. O costume veio por causa das proibições do ¢®°El-Rei¢®±. Tudo que se queria ia-se buscar do outro lado, nos espanhóis. No início, era pólvora e balas, carta de jogo, prendas de ouro, para as mulheres e preparos para os arreios. Depois da "Guerras dos Rosas", dos "Farrapos" e do "Paraguai" passou-se a se encangalhar tudo: panos, águas de cheiro, armas, miçangas Era só pedir. Nada de papel. Mascateava-se abertamente. Policia pouca, fronteira aberta e a gauchada, afinal, andava bem armada, para desespero da milicada.
-Jango Jorge foi o maior de todos neste oficio. Desde moço até o dia de sua morte. Eu sei, disse o "vô". Foi meu pai quem me contou. O avô desse daí e apontou para o compadre.
-Fazia tempo que meu pai não via Jango Jorge, quando pousou no arranchamento dele. Tava casado uma boa mulher, muito prazenteira, e tinha três rapazolas e uma mocinha - o "Ai Jesus" de todo mundo. Era noiva, casadeira e o casório já estava marcado.
-Estavam esperando o noivo e o resto do enxoval dela. O noivo chegou no dia seguinte. Começaram os preparativos para os dias de festa e de tal gosto convidaram meu pai para ficar, que ele não teve outro jeito.
-O velho Jango Jorge deixou o rancho naquela madrugada para vir buscar o tal enxoval da filha, aonde não se sabe. Mas se vinha pelas mãos de Jango, só poderia ser de outro lado da fronteira que por último andava mais vigiada.
-Passou o dia, passou a noite. No outro dia - o do casamento - passava a tarde e... nada.
-Quem menos estava preocupada ou assim parecia, era a dona da casa, talvez acostumada as andanças do marido,
-A casa se encheu de gente. Eram parentes, vizinhos de perto e de longe, convidados de todo lado, padrinhos e autoridades. Havia de se dançar e comer por três dias. Os acordeões e as violas tocavam sem parar. De quando em vez, a dona da casa mandava um dos filhos ver se o pai surgia na virada da estrada.
-Apareceu o noivo, num aprumo só, de colarinho duro e casaco de rabo. Atrás dele vieram os ditos, as conversinhas e as piadas....
-Só quem não ria era a noiva que trancada num quarto, vestida ainda de chita de andar em casa, toda penteada, chorava e ria esperando seu vestido branco, seus sapatos brancos, seu véu branco e as flores de laranjeira que, desde pequena, insistia em encomendar ao pai "pru casu de um dia ela casa". Não quero enxoval daqui. "U sinhô vai ter que me trazer o mais belo de lá".
Nisso alguém gritou no terreiro:
- Aí vem o Jango Jorge cercado de gente!
-Era a boquinha da noite, quando pouco se vê. Ao acender algumas tochas e luzes, apareceu a comitiva, mas vinha arrastando um pesado silêncio.
-Jango Jorge chegou realmente, só que com um braço pendido e outro dobrado no peito, carregado por seus camaradas, com os olhos fechados e a testa franzida, agarrando-se nos últimos sopros de vida.
-Não foi preciso perguntar nada. Não era preciso falar nada. A festa acabou e a tristeza havia chegado, contava Simão Lopes.
-Levou-se o corpo para a mesa e, afastando-se os pratos enfeitados, entregaram o velho gaúcho "pra dona dele", sua amada. Então um dos homens disse:
-O capitão está morrendo. Só agüentou até aqui porque é macho até a excomungada da beira. A guarda deu em cima e tomou os cargueiros, mas o capitão avançou para a mula ponteira e dela tirou um pacote, que amarrou no corpo, pouco antes que de o crivarem de balas. Bandidos ordinários! Foi muita briga, para trazer ele de volta pra senhora.
-A sinhá, dona mãe da noiva, afastou o braço do gaúcho do peito, abriu o poncho do marido e desamarrou do seu corpo o embrulho. Era o vestido branco, o véu, os sapatos e a grinalda, manchada de sangue, marcados de bala, tudo amassado.
-Jango Jorge levantou os olhos, fitou mãe e filha, esboçou um sorriso, pendeu a cabeça pro lado e foi-se embora em paz. Havia cumprido a última "empeleita".
Disse Simão Lopes que "o choro rompeu por todo lado".
Depois da história, a gauchada foi saindo calada, para se recolher.
Nem vi que a guria havia voltado. Que havia desamarrado o baio e sumido na escuridão.
No dia seguinte, no meio da estrada, pensando na vida, acabei perguntando ao amigo: - O que fazia a bisneta de Jango Jorge, no galpão?
O gaúcho olhou de lado, como se verificasse se alguém pudesse nos ouvir, e fazendo cara de segredo, disse entre os dentes: - "Ela faz contrabando". - " É disso que a guria vive".
Inverno de 1999 - Jose Mauricio de Barcellos